quarta-feira, 4 de maio de 2011

Detesto a burca, mas a nova lei francesa – que multa e prende quem usar o traje – só acirra a intolerância



Quando eu vi uma mulher de burca pela primeira vez fiquei indignada, e cheia de perguntas sem resposta. Eu tentava ver os olhos da mulher por trás da tela negra. Seria jovem, idosa? Seu olhar seria resignado ou um pedido mudo de socorro? Conseguiria respirar? Culpei os homens e o fanatismo islâmico. Ali estava uma mulher condenada à ausência de desejos.
Hoje, eu me vejo condenando a nova lei na França. O governo de Nicolas Sarkozy decidiu multar em € 150 toda mulher que, num espaço público, se cobrir com dois tipos de véus muçulmanos: a burca e o niqab, que só insinuam ou mostram os olhos. Andar dentro de carros, ir a locais de culto e trabalhar com esses véus pode. Mas caminhar, ir a parques, museus, hospitais etc., não. A lei permite o xador e o hijab, que deixam a face exposta, e não cita o islamismo ou credos religiosos. Proíbe apenas “a dissimulação do rosto”. O slogan é: “A República se vive com o rosto descoberto”.
O que a França consegue com isso? Transformar um símbolo de opressão num símbolo de autodeterminação religiosa e até feminina. Muitos se rebelam contra a arrogância do Estado que decide determinar como a mulher deve se vestir. Chrystelle Khedouche, francesa de 36 anos que se converteu ao islã, disse: “Decidi não usar o véu islâmico... agora, me obrigar a não usar é suprimir minha liberdade”.

Antes que o fundamentalismo católico, ateu ou feminista desabe sobre mim, vamos aos fatos, despidos de preconceitos. Há 5 milhões de muçulmanos na França. Menos de 2 mil mulheres usam burca ou niqab. Em Paris, não passam de 800. Elas se concentram em bairros de imigração árabe. Pela lei, policiais podem pedir que a mulher retire o véu para se identificar, mas não podem forçá-la a nada. Caso ela se recuse, eles a levarão à delegacia, e ela será multada. Essa minoria de muçulmanas já disse não se opor a mostrar o rosto ao pegar filhos na escola, ou à entrada de um banco ou museu. Mas se nega a abrir mão do véu.
Por trás da letra da lei, existe hipocrisia. Sarkozy precisa de medidas populares para melhorar suas chances de reeleição. A maioria dos franceses apoia o veto aos véus. Cita valores laicos e de liberdade da República francesa. São argumentos que soam legítimos. O véu integral, que não é pré-requisito no Alcorão, fere a dignidade da mulher por subtraí-la da sociedade. Muçulmanas obrigadas pelo marido a se cobrir estariam, enfim, livres para mostrar o rosto. É verdade. Mas e as que não abrem mão de se vestir assim? A França estaria violando seus direitos humanos.
Há quem fique chocado com as mulheres nuas de pernas abertas, deitadas ou de quatro, nas bancas de revistas. Ou com as prostitutas semidespidas que se oferecem a clientes nas ruas. Serão todos multados e detidos em nome da República? O que determina a dignidade feminina se elas se despem ou se cobrem por vontade própria, por fé ou dinheiro, e não por submissão?
Um argumento hipócrita é o da segurança. Pessoas só com os olhos de fora podem ser terroristas disfarçados. Como se pessoas bombas, assassinos em série ou mártires fanáticos precisassem de burca para matar e morrer. Quando eu estava em Nova York em meio à nevasca, fui uma involuntária ameaça à segurança. Usava chapéu, sobretudo até os pés e echarpes em torno do pescoço e da face para evitar o vento cortante. Minha visão escapava ao agasalho, mas usei óculos de sol para não lacrimejar. O argumento da segurança não é racional. E os franceses se orgulham de ser racionais.
Motociclistas de capacete, cristãos carnavalescos ou mascarados em procissões religiosas, todos podem ocultar o rosto. Isso leva a nova lei a parecer xenófoba. Sarkozy talvez personifique o sentimento nacional de aversão à imigração e aos diferentes. Alguns franceses dizem: “Quer usar a burca? Então volte para seu país, volte ao lugar de onde veio”. Para muitas delas, esse lugar é a França.
Destesto a burca e o niqab. Mas uma lei que multa e prende só acirra a intolerância. Para usar uma palavra que os franceses adoram, é “ridicule”.


Mulher afegã olha através de sua burca. Afeganistão, 13 de abril de 2002


Mulher muçulmana protesta em centro comunitário. Blackburn, Inglaterra, 14 de outubro de 2006



 Kenza Driderconcede entrevista em Paris no primeiro dia de proibição do "niqab" ou véu integral. A proibição vigora a partir de hoje em lugares públicos da França. Paris, 11 de abril de 2011.


Modelos usam véu durante um desfile em Tekbir Giyim. Turquia, 20 abril de 2008


Mulher muçulmana tira uma fotografia durante um desfile em Tekbir Giyim. Turquia, 20 de abril de 2008.


Modelo desfila na passarela com cabeça coberta por véu durante o show da Sterms no Hotel Sheraton. Turquia, 03 de março de 2008.


Modelo caminha na passarela com lenço na cabeça durante um desfile em Tekbir Giyim. Turquia, 20 de abril de 2008.


Modelo muçulmana se prepara para o desfile em Tekbir Giyim. Turquia, 20 de abril de 2008.


Mulher faz compras na rua principal de Istambul. Turquia, 21 de abril de 2008.


Encontro de amigas para compras na rua principal em Istambul. Turquia, 21 de abril de 2008.


Manequins em loja de Beirute. Líbano, 6 de outubro de 2010.


Pessoas olham para uma tenda do mercado que vende burcas. Londres, 20 de janeiro de 2011.


Mulher monta e veste bonecas em Depok. Indonésia, 12 de julho de 2007.


Mulheres cantam em concerto durante o "dia da paz". Afeganistão, 21 de setembro de 2010.


Cantor, compositor e ativista dos direitos humanos, Farhad Darya estende a mão para as mulheres enquanto canta. Afeganistão, 21 de setembro de 2010.


Mulheres vestidas com burcas da bandeira americana, caminham pela multidão durante manifestação. EUA, 12 de setembro de 2010.


Ministra dos Negócios Estrangeiros da Mauritânia Naha Mint Mouknass (direita) atende a uma reunião em Sirte em 08 outubro de 2010.


Mulheres costuram no departamento de produção da Tekbir. Turquia, 3 de outubro de 2007.


Mulher aprendendo a costurar em um centro de ONG em Xamar. Somália, 15 de fevereiro de 2011.


Médicas cuidam de uma recém-nascida no Hospital Hedayat. Irã, outubro de 1999.


Oficiais femininas participam da cerimônia de graduação da primeira turma de mulheres. Afeganistão, 23 de setembro de 2010.


Irã celebra o segundo gol contra a Turquia durante o jogo do grupo A nos Jogos Olímpicos da Juventude. Singapura, 12 de agosto de 2010.


Mulher de véu joga sinuca em um hotel no Golfo Pérsico. Irã, 4 de julho de 2003.


Lutadora do time nacional afegão treina no Estádio Nacional. Cabul, Afeganistão, 3 de maio de 2010.


Mulher iemenita vestindo burca tradicional mergulha na praia Al-Baraka. Iêmen, 2 de dezembro de 2010.


Mulher iemenita vestindo burca tradicional mergulha na praia Al-Baraka. Iêmen, 2 de dezembro de 2010.


Mulher afegã visita uma loja de burcas. Cabul, Afeganistão, 20 de março de 2002.


Estudantes palestinas de engenharia participam da cerimônia de formatura na Universidade Islâmica. Faixa de Gaza, 31 julho de 2005.


Manifestantes do grupo britânico "Muçulmanos Contra as Cruzadas" protestam enquanto o Papa Bento XVI passa pelo Hyde Park. Londres, 18 de setembro de 2010.



Mulheres de burca se despedem de seus parentes que estão partindo para a peregrinação religiosa. Índia, 26 de outubro de 2010.


Viúvas afegãs esperam para receber as rações mensais do Programa Alimentar Mundial (PAM) em Cabul, 26 de outubro de 2010.


Uma mulher vestida com burca tradicional passa por um tanque da Aliança do Norte perto da aldeia de Khanabad. Afeganistão, 18 de novembro de 2001.


Uma mulher atravessa a fronteira entre o Paquistão e o Afeganistão. 24 de setembro de 2002.


Mulher vestida com a burca tradicional muçulmana caminha pelo pátio da mesquita Omíada. Síria, 30 de agosto de 2006.


Mulheres afegãs andam durante um dia de inverno em frente ao Palácio Darulaman. Cabul, Afeganistão, 3 de fevereiro de 2002.


Mulheres de burca passam pelo outdoor da única canditada a presidência do Afeganistão, Massooda Jalal. Afeganistão, 25 de setembro de 2004.


Mulheres afegãs votam durante as eleições parlamentares na província de Balkh. Cabul, Afeganistão, 18 de setembro de 2010.


Refugiados buscam informações sobre a mudança para um novo campo devido à superlotação. Quênia, 24 de agosto de 2008.


Mulher caminha em Herat. Afeganistão, 12 de outubro de 2010.


Mulheres usam seus celulares antes da oração do Eid al-Fitr na mesquita Istiqlal. Jacarta, Indonésia, 10 de setembro de 2010.


Mulheres tailandesas rezam durante o Eid al-Fitr em uma mesquita no sul da província de Pattani. Tailândia, 10 de setembro de 2010.

Um comentário:

  1. De que resolve tratar uma intolerância com outra intolerância? Triste como todos os ideais franceses que foram a base das políticas humanitárias se perdem na xenofobia aguda desse país.
    Parabéns pelo post.

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